“A mulher dentro da corporação é um caminho que não tem volta, nós precisamos ocupar o nosso espaço”. Essas são as palavras da tenente-coronel Hadassah Susannah Beserra Souza, a primeira mulher a comandar o maior Batalhão da Polícia Militar em Mato Grosso.
Ela está à frente do 3° batalhão desde setembro de 2021 e garante que não pretende parar por aí. “Tenho planos de ser comandante-geral, não nego. Falo isso desde sempre e faço questão de falar, porque se eu não falar e não assumir, a benção não vem”.
Formada em direito e psicanálise, áreas do conhecimento que agora contribuem no aprimoramento da sua gestão, a tenente-coronel contou sobre o orgulho e os desafios que envolvem a sua função.
Segundo ela, A mistura de sentimentos é de “orgulho e desafio”. Se por um lado ela inspira e representa mulheres por meio do seu trabalho, por outro, precisa liderar sendo minoria em uma profissão tida naturalmente como masculina.
As mulheres estão ocupando espaços que são, via de regra, ocupados por homens. Então, tem o sentimento de desafio porque sou minoria
“Hoje, o 3° batalhão é expressivo na capital, um batalhão que tenho certeza que qualquer oficial gostaria de estar sentado aqui comandando”, disse.
Confira os principais trechos da entrevista:
MidiaNews – Como se sente sendo a primeira policial mulher a comandar o maior batalhão da Polícia Militar de Mato Grosso? Se enxerga como pioneira?
Hadassah Susannah – Acho que me enxergo como pioneira, sim. Somos poucas mulheres dentro da instituição e em funções de comando, então é um misto de orgulho e desafio. Pedi muito para comandar, fiquei no pé dos comandantes e foi uma oportunidade que o coronel [Jonildo José de] Assis me deu. Para mim foi um presente, já me sentia orgulhosa de começar o trabalho, mas quando vou para as ruas e as mulheres me olham e falam: “Me identifico com você”; “estou acompanhando o seu trabalho”, é porque ela se sente parte e isso me deixa ainda mais orgulhosa.
As mulheres estão ocupando espaços que são, via de regra, ocupados por homens. Então, tem o sentimento de desafio, porque sou minoria. No batalhão temos um total de 240 membros e dentre eles apenas 8 meninas. Mas é tudo uma questão da irmos ocupando espaços.
Tem coisas que a gente não pode negar. A profissão policial militar é uma profissão de força, você usa arma, pula muro, enfrenta bandido, troca tiros, e via de regra é uma profissão masculina. Tanto que o percentual de entrada na PM de mulheres é de 20% e de homens 80%. Era 10% até um tempo atrás, aumentamos bastante o percentual.
MidiaNews – Sempre almejou entrar para a corporação? Era um sonho de infância?
Hadassah Susannah – Com 10 anos fui para a escola Tiradentes e assim como ela termina mudando muitos trajetos, mudou o meu. Tinha que fazer uma prova para entrar na 5ª série e eu não queria ir para lá, mas minha mãe me obrigou a fazer essa prova. Fiz, passei, e entrei para a escola. Tinha que desfilar nas formaturas militares, marchar, limpar o sapatinho social preto e eu não gostava daquilo, falava: “Odeio essa raça”. Mas não tem jeito, você começa a conviver naquele ambiente e logo pega gosto, de uma hora para outra.
Só que eu reclamava tanto dos policiais e do sistema, que quando comecei a ter interesse em entrar para a polícia tive vergonha de falar que “virei a casaca”, que fui para o outro lado e escondi até dos meus pais. Quando contei, ninguém acreditou. Botei na cabeça, estudei, estudei, e graças a Deus passei no primeiro vestibular. Não sei explicar se é uma vocação, um dom, um chamado. Mas sei que é um amor que a gente aprende a ter pela instituição que não preço.
MidiaNews – O que diria para mulheres que almejam entrar para a Polícia Militar?
Hadassah Susannah – Para as mulheres que tem esse sonho, só posso dizer que lutem e vão atrás, vale a pena. Não é fácil, no sentido de que nenhuma profissão é, mas é extremamente gratificante.
Queria deixar também um recado às polícias militares: A instituição depende muito de vocês! Tem meninas com um potencial incrível e que tem feito um excelente trabalho.
Fico tão satisfeita quando vou a um batalhão, uma solenidade, e vejo policias militares que às vezes não conheço, porque é muita gente, e elas chegam a mim, me abraçam e dizem que apoiam o meu trabalho e que se enxergam nele. Isso me fortalece e ao mesmo tempo a gente passa uma mensagem.
Eu passo uma mensagem aos meus comandantes, para a sociedade, de que precisamos ocupar o nosso espaço, e a mulher dentro da corporação é um caminho que não tem volta. Precisamos assumir funções e precisamos de oportunidade. Hoje, o 3° batalhão é expressivo na capital, um batalhão que eu tenho certeza que qualquer oficial gostaria de estar sentado aqui comandando e a oportunidade de estar aqui como mulher é uma mensagem que o comando passa de valorização do seu corpo feminino.
O 3° batalhão é uma tropa antiga e com isso requer um olhar diferenciado. Tenho policiais que estão aqui há 20, 25 anos, alguns nunca trabalharam em outra unidade. É uma tropa que carrega o batalhão nas costas
MidiaNews – Como é a sua rotina dentro do batalhão?
Hadassah Susannah – O batalhão é muito intenso e, justamente pela dinamicidade do serviço, cada hora acontece uma coisa diferente. Brinco que é susto atrás de susto, a rotina não para e o batalhão está 24 horas na rua atendendo ocorrências. Eu acordo 5h30, mando meu filho para a escola, vou treinar e venho para o quartel, aí eu não tenho horário para ir embora.
Eu tento controlar para as 18h, 18h30 ir para casa, essa é a rotina que a gente busca. Mas tem operações que começam às 22h, dependendo do lugar, então depende de para onde estamos encaminhando as nossas operações.
MidiaNews – Quais são as especificidades e os principais problemas da região atendidas pelo batalhão?
Hadassah Susannah – O 3° batalhão é uma tropa antiga e com isso requer um olhar diferenciado. Tenho policiais que estão aqui há 20, 25 anos, alguns nunca trabalharam em outra unidade. É uma tropa que carrega o batalhão nas costas, eles amam isso daqui como se fosse a casa deles, defendem com unhas e dentes.
O 3° batalhão é uma área diferenciada, porque é muito grande, o maior batalhão do estado em questão numérica de pessoas e número de bairros. São 100 bairros cadastrados mais os que ainda não estão. Nossa área é muito diversificada e tem características diferentes que cobram da gente, enquanto instituição, posturas diferentes.
Temos a região do CPA, por exemplo, que é muito grande, com crimes próprios desses locais: furtos e roubos que demandam um olhar. Temos a área da patrulha rural, que compreende os dois lados do paredão de Chapada. É uma comunidade que está enxergando agora, no patrulhamento rural, uma proximidade com a Polícia Militar que antes não tinha pela distância e falta de comunicação. Fora a área rural, temos as comunidades mais carentes, são bairros que atendemos também com cestas básicas, fazemos o monitoramento e vemos como podemos ajudar com o auxílio de parceiros, tem famílias que são previamente cadastradas e tem aquelas que a gente vai atender uma ocorrência e se depara com crianças passando fome.
Temos também uma área mais elitizada, que compreende bairros com pessoas de maior poder aquisitivo, que tem outras características. São bairros mais desertos em que as casas têm muros altos e a comunicação entre os moradores praticamente não existe, então a dinâmica do policiamento é diferente.
De maneira geral, os problemas que a gente encontra são típicos de uma capital: furto a residência, roubo em estabelecimento comercial, em vias públicas, roubo de carros. O tráfico de drogas é uma realidade cotidiana que é encontrada em qualquer nicho. Sempre brinco que não se esgota e nunca vai, infelizmente, a segurança pública. Enquanto a sociedade viver em comunidade, vai ter esses problemas.
Tenho planos de ser comandante geral, não nego. Falo isso desde sempre e faço questão de falar, porque se eu não falar e não assumir, a benção não vem, e é algo que eu trabalho para isso. Não sei os planos do meu Deus pra minha vida. Sou religiosa e cristã, estou de baixo da graça e da vontade Dele, mas falo para os 4 cantos que pretendo ser comandante geral.
MidiaNews – Em algum momento da carreira percebeu que enfrentou dificuldades ou que passou por alguma situação diferente dos demais colegas por ser mulher?
Hadassah Susannah – Têm situações. Vou citar uma para te dar como exemplo: lá trás, em 2006, me habilitei para fazer o curso da Força Nacional e o meu nome não colaborou por ser muito difícil. Me habilitei, fiz a mala com a lista de materiais que tinha que comprar e recebi uma ligação de Brasília, em 2006 não tinha nem Whatsapp. Me perguntaram: “Hadassah? Você é mulher?”. Quando falei que sim, ouvi: “Desculpa, você não vai poder vir, porque a vaga não foi disponibilizada para mulheres”.
Nisso, já tinha treinado e comprado tudo, sem contar que eu estava empolgada. Pensa numa frustração tão grande que tive. Pedi para me deixarem ir, mas falaram que não tinha como, porque não tinha alojamento feminino. Chorei, pedi, implorei, liguei para o meu comandante da época, mas não teve jeito. Acabei indo três anos depois, na Paraíba, para fazer esse mesmo curso depois que eles se organizaram.
Então têm dessas coisas, hoje é bem menos, mas vamos pensar em 2001 quando eu entrei. Havia quartéis que não tinham banheiro para mulheres, tiveram cursos que eu gostaria de ter feito lá trás, mas não pude por ser mulher. É interessante até na abordagem policial. Você chega para um cidadão masculino e fala: “Parado, polícia, mão na cabeça”, e ele te olha de cima a baixo. É diferente e é nítido. A própria sociedade te olha um pouco diferente por ser mulher.
MidiaNews – Já chegou a perceber alguma resistência de subordinados do batalhão por ser mulher?
Hadassah Susannah – Não, nunca senti. Como a gente é minoria entra com o pé atrás, pisando em ovos. Mas desde que entrei para a Polícia nunca senti isso em lugar nenhum. Com o tempo, você vai se sentindo mais à vontade, vai construindo um espaço dentro da instituição, consolidando quem é você e a forma de trabalhar.
Além disso, o sistema hierárquico não permite isso: “Não vou seguir ela, porque é mulher”. Isso não permite. Pela minha vivência dentro da instituição cheguei sendo muito bem recebida, tanto na parte administrativa, quanto a operacional.
MidiaNews – Como enxerga a questão do machismo dentro da Polícia Militar?
Hadassah Susannah – Acho que vai ter sempre vários olhares. Enquanto tenente-coronel, tenho uma visão que talvez a soldado que trabalha comigo não tenha. Já tive, sim, o desprazer de ter, dentro da instituição, que participar e apoiar policiais militares que fizeram denúncias de perseguição, de meninas que denunciaram abusos. Isso já aconteceu, foi há muito tempo, mas aconteceu. O caso chegou a mim, porque elas me contaram e pediram socorro, mas não aconteceu comigo. Penso que é uma realidade que ainda exista, mas talvez eu seja pouco afetada justamente pela função em que estou. Nunca mais ouvi nada, graças a Deus, quero achar que está tudo em paz, tranquilo nesse sentido.
Eu converso muito com as minhas policiais militares e trato as meninas do meu batalhão de baixo da minha asa mesmo, porque não sei se o que ocorre comigo, de fato, é o que ocorre com elas. Valorizo dentro da instituição políticas como a dos comandantes dos últimos anos – a valorização da policial militar, colocá-la em uma condição de ser cuidada. Como é que eu posso falar em Maria da Penha, falar em determinados assuntos, se eu não cuido das minhas mulheres?
MidiaNews – Quais são seus planos para o futuro almeja ocupar alguma outra posição na corporação?
Hadassah Susannah – Tenho planos de ser comandante-geral, não nego. Falo isso desde sempre e faço questão de falar, porque se eu não falar e não assumir, a benção não vem, e é algo que eu trabalho para isso. Não sei os planos do meu Deus para minha vida. Sou religiosa e cristã, estou debaixo da graça e da vontade Dele, mas falo aos 4 cantos que pretendo ser comandante-geral.
Fonte: Mídia News